Literacia em Saúde

No decorrer das últimas duas décadas, o conceito de literacia em saúde conquistou a atenção e o interesse de diversas disciplinas científicas, tais como Medicina, Enfermagem, Psicologia, Sociologia, Serviço Social e Economia (Kickbusch, Maag, & Saan, 2005; Ratzan & Parker, 2000; citados por Loureiro, Rodrigues, Santos, & Oliveira, 2014). As investigações realizadas no domínio da Saúde têm demonstrado o poder preditivo do grau de literacia em saúde na qualidade do estado de saúde das pessoas (Ownby, Waldrop-Valverde, & Taha, 2012), evidenciando as implicações que a capacidade individual de tomar decisões fundamentadas no que diz respeito à saúde têm a nível pessoal e social (Ma°rtensson & Hensing, 2012; Mõttus et al., 2014).

Em termos concretos, verifica-se que os sujeitos literados em saúde são mais capazes de desenvolver comportamentos efetivamente promotores da sua saúde (e.g., adotam uma alimentação equilibrada e praticam exercício físico com regularidade; sabem onde se dirigir e a quem recorrer caso necessitem de alguma forma de assistência relacionada com o seu estado de saúde; tomam a medicação de acordo com a respetiva prescrição médica) (Antunes, 2014), uma vez que compreendem com facilidade a informações prestada pelos profissionais relativamente a cuidados preventivos e opções de tratamento (Mancuso, 2009). Em contrapartida, constata-se que as pessoas com um menor grau de literacia em saúde tendem a evidenciar uma maior “dificuldade na prevenção e na gestão de problemas de saúde” (Baker, 2006; Baker, Parker, Williams, & Clark, 1998; citados por Antunes, 2014, p. 130), adotando comportamentos de risco, como sejam o uso incorreto de medicação e/ou a transgressão involuntária de normas de segurança em casa e no local de trabalho (Ma°rtensson & Hensing, 2012). Tais comportamentos – justificados por alguma literatura científica como decorrentes da dificuldade em interpretar instruções ou sintomas (e.g., Kappel, 1988; Murata, Arkida, & Shirai, 2006; citados por Ma°rtensson & Hensing, 2012) – potenciam a deterioração do estado de saúde das pessoas e acarretam custos financeiros significativos, quer para os próprios sujeitos, quer para a sociedade: a nível individual, há que considerar o pagamento dos tratamentos a realizar, enquanto que a nível social consideram-se não apenas as despesas relativas aos recursos humanos e materiais necessários para proporcionar assistência à saúde aos cidadãos, como também os custos decorrentes do absentismo laboral provocado pela degradação do estado de saúde dos trabalhadores (Antunes, 2014).

Compreende-se, assim, o crescente interesse científico pelo conceito de literacia em saúde, uma vez que parece ter um impacto expressivo na saúde das pessoas (Ownby, Waldrop-Valverde, & Taha, 2012). No entanto, a atenção conquistada pelo conceito ultrapassa já as fronteiras da comunidade científica, uma vez que também se constitui como um fator-chave para o sucesso da reforma dos cuidados de saúde (Huber, Shapiro, & Gillaspy, 2012, citados por Antunes 2014). Ou seja, também os decisores políticos parecem cada vez mais interessados em promover a literacia em saúde dos cidadãos a fim de reduzir os gastos associados a decisões e comportamentos prejudiciais à saúde (Antunes, 2014).

Mas se o impacto da literacia em saúde é, aparentemente, evidente na qualidade da saúde das pessoas, a sua definição não é ainda consensual (Ma°rtensson & Hensing, 2012). De acordo com a revisão bibliográfica efetuada por Ma°rtensson e Hensing (2012), coexistem duas abordagens ao conceito de literacia em saúde com uma influência diferenciada na promoção da saúde.

A primeira abordagem veicula uma perspetiva polarizada do conceito, pressupondo a existência de dois graus únicos de literacia em saúde: um nível baixo, ou inadequado, e um nível elevado, ou adequado. Esta perspetiva define a literacia em saúde como uma compreensão funcional da informação sobre saúde, requerendo competências básicas ao nível da leitura, da escrita e da numeracia para obter, processar e entender informação e usar eficazmente os serviços de saúde (Ma°rtensson & Hensing, 2012). Mas ainda que esta definição pressuponha uma intervenção de âmbito educacional, a visão polarizada do conceito sugere a existência de diferenças individuais na capacidade para desenvolver um grau de literacia em saúde inadequado ou adequado. De acordo com esta perspetiva, a diferença residirá na capacidade cognitiva de cada pessoa, pelo que crianças e idosos constituirão um grupo com um grau inadequado de literacia em saúde (Ownby, Waldrop-Valverde, & Taha, 2012). Ou seja, à luz desta abordagem, a capacidade cognitiva é reconhecida como um fator mediador do processo de desenvolvimento da literacia em saúde, cabendo à Educação promover a aquisição de competências básicas para a compreensão de informação sobre saúde e para uma ação individual eficaz nos serviços de cuidados (Ownby, Waldrop-Valverde, & Taha, 2012). Perspetivada deste modo, a literacia em saúde acaba por ser entendida como um atributo pessoal, veiculando a ideia de que cada pessoa é responsável pela capacidade de compreender a Saúde (Ma°rtensson & Hensing, 2012). Não são considerados aspetos culturais e as competências comunicacionais, ignorando-se o papel dos profissionais de saúde no desenvolvimento de cidadãos literados em saúde. Como referem Ma°rtensson e Hensing (2012), parece que é esperado que as pessoas aprendam, por elas próprias, a linguagem técnico-científica dos profissionais de saúde, em vez de serem estes profissionais a adequar a sua comunicação ao nível de conhecimento das pessoas.

A segunda abordagem ao conceito de literacia em saúde supera as críticas visadas à primeira perspetiva, entendendo este construto como um fenómeno abrangente e multideterminado (Ma°rtensson & Hensing, 2012). Segundo esta perspetiva, a literacia em saúde é desenvolvida ao longo da vida, pela interação da pessoa com o meio (Antunes, 2014), e implica não apenas a literacia fundamental (representada pelas competências de leitura, escrita e numeracia), mas também a literacia científica (conhecimento de conceitos científicos), a literacia cultural (suspeição relativamente à verdade absoluta da informação científica) e a literacia cívica (uso eficaz das tecnologias e conhecimento dos próprios direitos e deveres) (Kickbusch, 2001, citado por Ma°rtensson & Hensing, 2012, p. 155). Ou seja, a Educação mantém-se como a base do desenvolvimento da literacia em saúde, mas é reconhecida a influência de fatores culturais e sociais nesse processo. A definição de literacia em saúde veiculada pela Organização Mundial de Saúde (1998) parece traduzir com relativa clareza esta perpetiva, entendendo-a como “o conjunto competências cognitivas e sociais que determinam a motivação e a capacidade dos indivíduos para aceder, compreender e usar informação, de forma a promover e manter um bom estado de saúde. Implica a aquisição de conhecimentos, competências pessoais e confiança para agir de forma saudável, através de mudanças de estilo e condições de vida”.

Por outras palavras, esta abordagem pressupõe a combinação de competências cognitivas (pensamento crítico, análise, tomada de decisões e de resolução de problemas num contexto relacionado com saúde) e de competências sociais de comunicação, considerando que é no âmbito de um processo comunicacional bilateral que as pessoas desenvolvem a própria capacidade para usar a informação de saúde de modo eficiente, reforçando a motivação para a ação. De notar que, frequentemente, os profissionais de saúde utilizam uma linguagem técnica que, dada a sua especificidade, não é compreendida pela maioria das pessoas que recorrem aos serviços de saúde (Ma°rtensson & Hensing, 2012). Em contrapartida, alguns estudos verificaram também que muitos dos utentos desses serviços de saúde sentem-se inibidos para solicitar esclarecimentos aos profissionais de saúde, acabando por cumprir, de modo mais ou menos eficaz, instruções que não compreendem (Ma°rtensson & Hensing, 2012). A comunicação na saúde parece constituir, assim, um aspeto fundamental na promoção da motivação para usar informações e serviços para melhorar a saúde pessoal, empoderando e aumentando o sentido de auto-eficácia das pessoas e das respetivas comunidades (Antunes, 2014). Por outro lado, pressupõe uma partilha de responsabilidade entre cidadãos e profissionais de saúde pela gestão bem sucedida da saúde (Ma°rtensson & Hensing, 2012), entendendo que qualquer intervenção promotora da literacia em saúde deve envolver não apenas as pessoas (no sentido de melhorar os seus níveis de literacia fundamental, científica, cultural e cívica), mas também os diversos profissionais de saúde e demais serviços (no sentido de os consciencializar para a necessidade de encorajarem as pessoas a partilharem dúvidas acerca das suas condições de saúde, instruções, opções de tratamento) a fim de asseverar uma tomada de decisão efetivamente fundamentada (Antunes, 2014).

Conclui-se, assim, que a perspetiva da literacia em saúde enquanto fenómeno abrangente e dinâmico exige uma intervenção que não se coaduna com o recurso exclusivo a estratégias informativas. Tão importante como dotar as pessoas de conhecimentos acerca da saúde é motivá-las para procurarem informação e utilizarem, de modo eficiente e eficaz, os serviços disponíveis, no sentido de gerirem com sucesso a própria saúde. Contudo, motivar as pessoas para ação depende também da perceção delas acerca do suporte e do apoio proporcionados pelos profissionais de saúde, pelo que promover os níveis de literacia em saúde implicará também o desenvolvimento das competências sociais de comunicação desses profissionais.

 

Referências bibliográficas

 

Antunes, M. L. (2014). A literacia em saúde: investimento na promoção da saúde e na racionalização de custos. In APDIS (Ed.), XI Jornadas APDIS – as bibliotecas da saúde: que futuro? (pp. 123-133). Lisboa, Portugal, março 27-28. Lisboa: Faculdade de Medicina de Lisboa.

Mancuso, J. (2009). Assessment and measurement of health literacy: An integrative review of

the literature. Nursing and Health Sciences, 11, 77-89.

Ma° rtensson, L., & Hensing, G. (2012). Health literacy – a heterogeneous phenomenon: a literature review. Scandinavian Journal of Caring Sciences, 26, 151-160.

Mõttus, R., Johnson, W., Murray, C., Wolf, M. S., Starr, J. M., & Deary, I. (2014). Towards understanding the links between health literacy and physical health. Health Psychology, 33 (2), 164-173.

Loureiro, L. M. J., Rodrigues, M. A., Santos, J. C., & Oliveira, R. A. (2014). Literacia em saúde- breve introdução ao conceito. In L. M. J. Loureiro (Coord.), Literacia em saúde mental – capacitar as pessoas e as comunidades para agir (pp. 13-26). Coimbra: Unidade de Investigação em Ciências da Saúde – Escola Superior de Enfermagem de Coimbra.

Organização Mundial da Saúde (1998). Glossário de Promoção em Saúde. Genebra: organização Mundial da Saúde.

Ownby, R. L., Waldrop-Valverde, D., & Taha, J. (2012). Why is health literacy related to health? An exploration among u.s. national assessment of adult literacy participants 40 years of age and older. Educational Gerontology, 38, 776-787.